Antigamente as pessoas imaginavam que do ano 2000 em diante a humanidade estaria andando de carro voador pra cima e pra baixo. Haja otimismo. Estamos aqui e a maioria esmagadora dos veículos obedece a força da gravidade.
Uma situ não foi prevista nem pelos mais pessimistas: a humanidade enquanto produtora de conteúdo. E quando digo “a humanidade” também estou falando sobre você. Não adianta olhar pro lado como quem não fez nada. Quem tem cadastro em rede social é um pacato cidadão, internauta e produtor de conteúdo. “Ah… mas eu não”. Você sim!!! Todo mundo é produtor de conteúdo.
E nós brasileiros somos privilegiados. Vivemos em uma das nações que mais fica com a cara enfiada no celular criando conteúdo. Fotos!!! Textos!!! Vídeos!!! Áudios!!! Também somos o país mais ansioso do mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
Lembre-se: Deus é brasileiro e o Papa é Argentino.
Uma das consequências dessa normalização é a presença natural de profissionais vendendo seus trabalhos. Afinal, todo produtor de conteúdo também é um vendedor. Você pode estar pensando: “Eeeeeeu? Ele está louco, eu não vendo nada”. Vende sim!! Se postou, vendeu, se vendeu, quer um like, uma visualização, um compartilhamento, a rede social te paga em atenção, que vira prazer na sua cabeça. Não é uma delícia?
Hoje em dia não tem como uma pessoa prestar um serviço sem falar sobre isso nas redes. Celebridades, adestradores, acompanhantes, profissionais da área da saúde, jornalistas, galera da moda, professores, pastores, atletas. Todo mundo vive o constante desafio de transformar audiência em cliente.
Outro efeito é ter nossa vida transformada quando precisamos justamente encontrar um serviço. Poderia ser algo simples, pois se temos uma infinidade de ofertas de todos os profissionais de todos os ramos, seria fácil achar. Mas trilhões de horas e tretragigabytes de conteúdo são um problemão.
O excesso de opções é um problemão em si. Daqui em diante vou focar os exemplos nos profissionais de saúde para pessoas privilegiadas com plano de saúde ou outros recursos. Mas poderia ser qualquer outra profissão.
Vamos pensar em… sei lá, deixa ver, já sei: otorrinolaringologista. Em tempos de aquecimento cada vez mais global, tá uma profissional que a gente vai visitar pelo menos uma vez na vida. Imagine que sua garganta tá coçando há uma semana, não custa nada ouvir a voz de uma especialista.
Se nenhuma pessoa do meu círculo indica alguém porreta, onde eu procuro? No Google. Antes de encontrar alguém, tenho de lidar com um mundaréu de conteúdo editado para aparecer logo na primeira página. Se eu acho que vale a pena, vou pro Google Maps procurar o endereço da pessoa. Vez em quando isso já basta, às vezes a gente resolve ir mais longe, checar se a pessoa é realmente tudo o que tá falando.
Uma possibilidade é dar uma passada no Instagram da profissional até então desconhecida. Lá você descobre que a pessoa é produtora de conteúdo sobre otorrinolaringologia em geral. De repente você tá vendo um Reels sobre remoção de amígdalas com imagens reais, uma garganta rosa pulsando na sua cara.
Temos aqui um ponto de virada na sua vida. Na sua vida inteira. O Instagram vai entender que você gosta de vídeos otorrino mostrando gargantas. Por pelo menos um mês o famoso algoritmo vai te mostrar coisas dessa estirpe. Logo você vai ter contato com pessoas fazendo lavagem nasal “do jeito certo”, vídeos sobre o mito da lavagem nasal e alguém em um podcast explicando porque a lavagem nasal pode causar câncer, vício, cansaço, diminuir empatia, acabar com as relações. Você só queria checar aquela dorzinha de garganta.
E o que dizer dos profissionais que dançam? Numa dessas, seu TikTok fica cheio de pessoas de jaleco branco apontando pros lados para explicar coisas. Do nada você cai em um vídeo “Coisas que podem acontecer com quem não lava o pinto (entre elas amputação do membro)” ao som do funk do momento e uma pessoa rebolando e apontando. Estranho.
Porém, vamos ter empatia, por favor. Tem gente com anos e anos e anos e anos e anos de experiência, com uma parede lotada de diplomas, mas que só consegue hackear o algoritmo jogando de ladinho.
Ao mesmo tempo, tem outro lado: como eu vou confiar numa pessoa que passa o dia todo dançando na frente do celular? Será que essa pessoa tem essa formação toda? E o número de seguidores também pega, se tem pouco fica a questão “só tem isso de seguidores?” e se tem muito a dúvida é: “será que comprou tudo isso de seguidor ou essa galera toda existe?”. O ideal seria não pensar em NADA DISSO, mas somos todos maluquetes.
Detalhe. Se você vai com a cara de alguém e resolve seguir esse profissional, prepare-se para adentrar em um universo novo. Aos poucos você vai conhecer melhor os pacientes, os funcionários e a família da especialista. Vai ver postagens da mãe da pessoa em maio e do pai em agosto. Se alguém morrer, você vai saber que a pessoa tá de luto. Em tempo de Copa do Mundo, vai ver foto da profissional de verde amarelo, no verão talvez seja possível vê-la com roupas de baixo em Punta Del Este.
Lembrando que você só estava com dor de garganta há alguns meses atrás. E no fim era só tomar um xaropinho qualquer.
Eu não tenho nada contra profissionais da saúde nas redes sociais. Pois, além de tudo, há muitos e muitos nomes sérios prestando o serviço essencial de informação as pessoas com qualidade e do jeito que a turma entende. E quem me conhece sabe que meu influenciador favorito é um médico, o nosso médico Doutor Drauzio Varella.
Antes era tudo mais simples. Nos tempos mais primórdios, era só abrir a lista telefônica, escolher um nome que agradasse, ligar e marcar. “Fisioterapeuta Jurandir que atende na rua de trás, aceita plano e tem horário amanhã? Com certeza, pode marcar, por favor”. Fim. Fora que tinha toda uma confiança por trás disso, não tinha de checar nada.
Hoje em dia você não marca mais pelo telefone, tem de agendar pelo WhatsApp. É também por lá que esse mesmo contato vai te mandar Feliz Natal e Feliz Ano Novo com um card cheio de texto e imagens lindas no fim do ano. Talvez um vídeo de gratidão narrado pelo Pedro Bial. Se quiser, você pode checar o status da otorrino todos os dias no Zap.
É essa a nossa vida. Não tem como mudar. Já era. Esse texto nem é uma reclamação, é mais um estranhamento com a realidade pois no final tá todo mundo correto, é assim que tem de ser. E os incomodados que façam suas coreografias reclamando.
Como tudo tem lados bons e ruins, vou terminar esse post lá em cima. Um dia parei num pronto socorro ortopédico, fui muito bem atendido e pedi uma indicação de um colega do rapaz especialista no meu problema. O médico disse “não tenho o celular do consultório aqui, mas segue no Instagram e pega o contato de fulano”. Pois bem, segui e acompanho o colega dele até hoje. De vez em quando o ortopedista posta umas colunas completamente tortas, cheias de pino, umas coisas complicadíssimas. Ele trabalha muito. Eu vejo aquilo e ajeito a minha coluna na hora. Vê se não é uma coisa boa.
Se você é dessas pessoas que adora marcar uma consulta, saiba que por apenas R$ 5,99 mensais você contribui para as minhas visitas periódicas aos meus médicos. Apoie a produção de conteúdo da Dia Sim, Dia Não. Mais detalhes no link:
***PS:
Deixo minhas boas vindas a quem tá chegando agora e meu muito obrigado a quem tá aqui há mais tempo. Vem muito mais por aí (acho eu, não garanto nada).
***O QUE FAZER NO PRÓXIMO FERIADO:
Esta edição está sendo enviada em uma semana de feriado nacional!!! Por isso resgato meu próprio conteúdo com dicas do que fazer no próximo feriado, já que vale para todas essas datas especiais:
***DRAUZIO VARELLA DO DIA:
E vamos com a seção dedicada ao meu influenciador favorito.
Essa semana almocei vendo um vídeo do nosso médico sobre o Dipirona. Eu falo O mas tem gente que fala A Dipirona. Enfim. Devo confessar que já tomei muito Dipirona, sempre um comprimido por vez, que fique claro.
Drauzio explica pra que serve o remédio ultra popular e ainda conta um pouco da história desse produto. Tem cada polêmica por trás, que se você soubesse ficaria enojado. Como diz o ditado, vivendo e aprendendo.
***LINKS PARA PREENCHER O VAZIO DA EXISTÊNCIA:
E por falar em profissionais, hoje na seção com links para te ajudar a preencher o vazio que pipoca dentro do seu peito, separei 5 links.
Os gregos escondidos dentro do cavalo de Troia prova que o Fábio Cruz segue se superando, como pode uma cabeça dessas.
Obrigado TikTok por me mostrar este vídeo da maior e mais influente voz do Rio de Janeiro.
“A porta dormiu aberta” é uma criação literária brasileira de extrema qualidade, assim como várias outras frases dessa lista.
Todo escritório deveria ter esse aviso.
Se você chegou até aqui talvez tenha lido meus 22 parágrafos acima sobre criadores de conteúdo. Se quiser uma análise mais profunda, vale ouvir a entrevista do Chico Barney com o pensamento vivo de Dora Figueiredo, a mulher que comeu o café da manhã da vizinha. É basicamente ouvir uma sessão de terapia cheia de atos falhos sobre a chamada creator economy (escrevendo em inglês porque as pessoas adoram outro idioma).
***POR HOJE É SÓ
Termina aqui a Dia Sim, Dia Não 130. Em breve a edição 131 chega na sua caixa de e-mails, é só se inscrever. Enquanto isso, não siga em frente, leia mais:
Infelizmente me identifiquei deveras como alguém que entra e sai de pronto socorro com criança catarrada até os poros do dedão. Recentemente fomos à dona otorrino e ela fez um longo rant sobre a lavagem nasal. Um absurdo, Davi, um absurdo!! Enfim, passado o desabafo: tem um Braincast ótimo sobre os profissionais que são todos ~creators~, recomendo.
Não quero ver esse vídeo dO (?) Dipirona porque ainda dependo dela de vez em quando. Minha cara agora tá igual a do emoji da foto que você postou. 😬