Um pingo de esperança na esbórnia do futuro
Promessas descumpridas, limite de cartão estourado, Nelson Rodrigues, primavera, dinheiro, Jorge Vercilo.
Eu jurei pra mim mesmo que essa newsletter jamais seria sobre assuntos atuais, factuais, novidadeiros, correntes, novos em folha, etc. Como disse o poeta, todas as promessas gratuitas são feitas para serem descumpridas - pois quando se envolve dinheiro e trabalho o ditado é "o combinado não sai caro".
Nesta semana o festival de música espanhol Primavera Sound resolveu por bem anunciar quais as atrações da edição de 2022 do evento (que, fica o registro, foi cancelado em 2020 e 2021). E não vamos focar na qualidade dos nomes confirmados, isso não importa aqui. Não vou nem me dar ao trabalho de escrever o nome e sobrenome de alguns deles. Na verdade, isso talvez não importe pra muita gente que está enfurnada em casa e aberta para ver qualquer manifestação artística de qualquer estirpe, em qualquer lugar.
O ponto é que um festival de música deve acontecer. Mas não é qualquer coisa. Este evento é conhecido em todo o mundo ocidental, tem tradição de reunir milhares de pessoas de todo o planeta no mesmo espaço de eventos e na mesma cidade, no caso Barcelona. E isso deve ser realizado em 2022. Dentro de 370 dias.
Março de 2020 foi há 430 dias.
No momento em que escrevo este texto a humanidade está em completa situação de barril. A maior parte das pessoas está na corda bamba, mal sabe se vai conseguir chegar no Natal. Só nos resta se cuidar, trabalhar e esperar. O que é um cenário que por si só não dá brecha para muitas oportunidades otimistas. Fazer planos é cada vez mais complicado.
É aí que o cartaz do festival Primavera Sound é quase um divisor de águas. Esta é uma das primeiras manifestações coletivas de otimismo registradas no ocidente. Bom, até já teve outras, como a autorização para as pessoas pararem de usar máscara em alguns lugares do mundo, mas essa é diferente.
Para um evento deste porte é preciso estar disposto a ficar no meio de pelo menos 100 mil pessoas durante horas, ou até mesmo dias seguidos. Primeiro ponto. E um festival de música com line up divulgado um ano antes envolve planejamento do público local, dos turistas, da organização da cidade, do festival, dos músicos, entre outros. Em muitos níveis, o que hoje em dia é inimaginável.
Pense comigo em alguns pontos. Primeiro o mais básico: os artistas precisam chegar com vida na data combinada, se isso não acontecer o público fica completamente sem clima pra alegria (e pra gastar dinheiro). Depois, a cidade estar disposta a receber pessoas de diversos lugares do mundo que vão festejar a vida, trocar aerossóis e muitos fluídos entre si.
No plano econômico tem a grana, pois o mundo é movido a dinheiro. Os ingressos deste evento começam a ser vendidos na próxima terça-feira e tudo indica que devem esgotar rapidamente. Mas quem, de qualquer lugar do mundo, garante que vai ter dinheiro pra gastar com lazer sem se afundar em dívidas daqui um ano?
Talvez eu esteja sendo muito realista, mas ao mesmo tempo concordo com o planejamento e tamanha positividade. É como dizem no Instagram: a hora perfeita nunca vai chegar. Se tivesse de apostar, diria que todos esses planos são possíveis de acontecerem.
Esse cartaz me fez lembrar de uma entrevista que li recentemente com o sociólogo, médico e professor de Ciências Sociais e Naturais da Universidade de Yale, nos EUA, Nicholas Christakis. Essa mente brilhante afirma que vem coisa muito boa por aí:
“Na pós-pandemia, tudo isso ficará para trás, como aconteceu com os loucos anos 20 do século passado. As pessoas inexoravelmente vão buscar mais interação social. Vão a casas noturnas, restaurantes, manifestações políticas, eventos esportivos.
A religiosidade vai diminuir, haverá uma tolerância maior ao risco e as pessoas gastarão o que não puderam gastar. Depois da pandemia, pode vir uma época de libertinagem sexual e gastança desenfreada.
Se você olhar para o que aconteceu nos últimos 2 mil anos, quando as pandemias acabam, há uma festa. É provável que vejamos algo parecido no século 21.”
Imagine toda a humanidade numa era de muita esbórnia, loucura, desespero, só se vive uma vez, gratidão de redes sociais, limite do cartão estourado e nome sujo no Serasa.
Quando a gente olha pro passado, descobre cada uma que parece duas no quesito pandemia. Por exemplo, o primeiro carnaval brasileiro depois da pandemia de 1918 foi o grande momento para ficar com o cartão de crédito no vermelho, se naquela época existissem cartões de crédito.
"Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas."
Foi assim que Nelson Rodrigues descreveu o que rolou em 1919. O nosso próximo carnaval ainda não tem data para acontecer, vale lembrar. Mas vai rolar.
***MÚSICA AO VIVO SÓ QUE GRAVADA
Estou começando um quadro novo nessa newsletter, que é o música ao vivo só que gravada. Neste momento eu vou separar trechos do cancioneiro que merecem uma atenção especial.
Hoje vamos de Homem-Aranha do poeta Jorge Vercilo
“Chega de bandido pra prender
De bala perdida pra deter
Eu tenho uma ideia
Você na minha teia
Chega de assalto pra impedir
Seja em Brasília ou aqui
Eu tive a grande ideia
Você na minha teia”
***MISTÉRIO DO DIA
Na edição passada de Dia Sim, Dia Não eu perguntei para você algo muito misterioso: por que a formiga tem quatro patas? E a resposta é: porque se ela tivesse cinco patas seria uma fivemiga.
Mas não vá embora sem antes responder mais uma pergunta importante: o que Marco Nanini e Marília Gabriela têm em comum? A resposta vem na próxima edição de Dia Sim, Dia Não.
***DICAS DO DIA: VÍDEOS
A internet é feita de dicas e eu é que não vou ficar fora dessa.
Hoje eu separei dois vídeos que merecem destaque para todos os amantes do audiovisual. O primeiro é essa obra de humor peculiar.
O segundo é um filme que deveria ser indicado ao Oscar: